COTAS PARA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO
MERCADO DE TRABALHO – POR QUE SIM!
Rita Mendonça[1]
Julho é um mês
importante para quem trabalha com inclusão da pessoa com deficiência no mercado
de trabalho. É que a Lei de Cotas faz aniversário no dia 24 desse mês. Já são vinte e quatro anos dessa conquista
histórica para os movimentos de pessoas com deficiência de nosso país.
A Lei de Cotas, em
verdade, se trata apenas de um artigo. É
o art. 93 da Lei n.º 8.213 de 1991, que institui o Plano de Benefícios da
Previdência Social. E se você está se perguntando
o porquê de apenas um artigo ter tamanha importância a ponto de ser chamado de
lei, é porque ele é a garantia de inclusão social para mais de 45 milhões de
brasileiros com um ou mais deficiências.
Diz a Lei de Cotas que
as empresas com 100 ou mais empregados devem preencher de 2% a 5% de suas vagas
com pessoas com deficiência. Esta é uma
ação afirmativa, ou seja, um reforço, um plus,
uma forma “turbinada” de inclusão no mercado de trabalho, que se destina
àquelas pessoas que tem mais dificuldades de ingressar ou se manter no emprego
em razão do estigma de incapacidade que lhes persegue, ainda que demonstrem
qualificação acima da média.
Dizemos estigma
porque TODOS nós, desde que respeitadas as nossas especificidades, somos
capazes de contribuir e sermos úteis.
Isso Henry Ford há muito já sabia, quando percebia que em diversas
etapas de sua linha de produção de automóveis, desde que respeitadas as especificidades,
ajustado o posto de trabalho para compensar as limitações, as pessoas cegas,
por exemplo, poderiam exercer uma atividade laboral remunerada sem nenhuma
diminuição de produção, se comparado a uma pessoa sem deficiência.
Isso nos leva a outra
reflexão importante: as pessoas não têm que se adaptar aos ambientes. Os ambientes é que tem que se adaptar às
pessoas. Quando um ambiente não permite
o acesso de alguém, é ele que precisa ser ajustado com urgência. Estamos equivocados quando diante da falta de
acessibilidade optamos por desestimular a pessoa com mobilidade reduzida de
frequentá-lo.
Vejam a ilustração abaixo. Na figura da esquerda os garotos se apoiam em
caixotes iguais, por trás de uma cerca de madeira, para assistir um jogo de
futebol. Mas como os meninos têm alturas
diferentes, os mais altos conseguem assistir o jogo e o menor, não. O mais alto
deles sequer precisaria de um caixote, pois em pé, no chão, consegue ver por
cima da cerca sem nenhuma dificuldade. O
quadrinho da direita mostra que, com uma distribuição diferente (desigual) dos
caixotes, todos têm a mesma oportunidade de enxergar e de torcer[2].
Isso também acontece com os direitos. Às vezes é necessário conceder direitos em
intensidades diferentes para as pessoas que se encontram em situações
diferenciadas. Igualdade nem sempre
significa justiça. São muitos os casos
em que promover justiça significa desigualar. E essa é a lógica das ações
afirmativas, conceito que é bastante amplo, mas que para o objetivo deste
artigo esclarecemos, resumidamente, que as ações afirmativas são políticas
públicas ou de iniciativa privada, obrigatórias ou facultativas, transitórias, voltadas
para o combate à discriminação e para a compensação de danos decorrentes de
exclusão, inclusive as segregações ocorridas no passado, de origem já esquecida,
reparando desigualdades históricas, como é o caso do negro africano escravizado
no Brasil.
Assim, as ações afirmativas são medidas de
favorecimento de determinado grupo que se encontre em situação social de desvantagem
quanto ao exercício de seus direitos. No
caso, estamos nos referindo às pessoas com deficiência. E é importante percebermos que a Lei de Cotas
é uma ação afirmativa.
Praticamente todos nós estamos aptos
para o trabalho, mesmo que tenhamos nossa mobilidade reduzida em razão de alguma
deficiência. O grande desafio é
descobrir as aptidões e harmonizá-las com as oportunidades e as habilidades das
pessoas, superando as limitações impostas pelas deficiências.
Longe estamos de resolver a questão da
empregabilidade das pessoas com deficiência em nosso país. É que mesmo com a Lei de Cotas o número de
pessoas nessa condição e aptas para o trabalho é muito maior do que o número de
vagas criadas com a determinação legal.
Como dissemos, as ações afirmativas são
remédios transitórios, Mas neste caso ainda não vislumbramos quando poderemos
considerar este remédio desnecessário. A
Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2013 nos revela que 92% das
pessoas com deficiência que hoje se encontram no mercado de trabalho ocupam
postos em empresas que são obrigadas a contratar. Isso significa que ainda não contratamos as
pessoas com base nas suas aptidões, habilidades e dons. Significa que os nossos preconceitos ainda
interferem fortemente nas relações de trabalho e nos processos seletivos. Significa que ainda precisamos da Lei de
Cotas para garantir a igualdade de oportunidades entre pessoas com deficiência
e sem deficiência.
É muito simplista acreditar que a
dificuldade de cumprimento das cotas para pessoas com deficiência no mercado de
trabalho é apenas em razão de sua baixa qualificação ou em razão do recebimento
do Benefício de Prestação Continuada (BPC-LOAS).
Lamentavelmente, já presenciamos muitas
pessoas com deficiência extremamente qualificadas para o trabalho, graduadas,
fluentes em mais de uma língua, doutoras e pós-doutoras, sutilmente descartadas
de processos seletivos, por serem qualificadas “demais”, pois ainda há quem acredita
que as pessoas com deficiência devem ocupar cargos de baixa complexidade, para
não “prejudicar” o ambiente de trabalho.
Isso demonstra que ainda que superados
todos os obstáculos para a inclusão, ainda teremos o mais arraigado deles para
enfrentar: a barreira de atitude, onde se encontram alojados o preconceito, a
discriminação e a exclusão.
Segundo o Ministério do Trabalho e do
Emprego “em cinco anos, houve o aumento de 20% na participação das pessoas com
deficiência no mercado de trabalho. Segundo a RAIS de 2013 foram criados 27,5
mil empregos para pessoas com deficiência. Com o resultado, chegou a 357,8 mil
o número de vagas ocupadas.”.
Dois importantes mecanismos legais de
aprimoramento da Lei de Cotas precisam ser mencionados: A Convenção sobre os
Direitos da Pessoa com Deficiência, da Organização das Nações Unidas (ONU), e
que no Brasil tem status de
Constituição Federal (ou seja, nenhuma outra lei pode ser contrária ao que a
Convenção determina), e a Lei Brasileira da Inclusão (conhecido como o Estatuto
da Pessoa com Deficiência), sancionada no último dia 6 de julho. Ambas estabilizam direitos para garantir a
inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho.
É importante mencionar que mesmo antes
desses instrumentos a legislação brasileira é de vanguarda na área dos direitos
da pessoa com deficiência, sendo inclusive referência para outros países. Entretanto, continuam sem oferecer punições
efetivas para quem não as cumpre como é o caso da Lei de Cotas. Entendemos que não nos faltam leis; e sim a
garantia do cumprimento efetivo delas.
Num país, que se propõe a priorizar os
direitos humanos, pensamos que a percepção desta particularidade e a ressignificação
do espaço da pessoa com deficiência na sociedade e no mercado de trabalho será
um grande avanço e uma marca incontestável do respeito à diversidade e do
compromisso com a vida humana.
Sonhamos com o dia em que a Lei de
Cotas seja desnecessária porque a falta de um membro, de um sentido ou de função
não será mais obstáculo para a nossa realização profissional. E nesse dia a Lei de Cotas será apenas uma marca
histórica, superada pelo nosso amadurecimento social e pela nossa tolerância e
respeito às diferenças.
[1] É advogada, pesquisadora e consultora, especialista
em direitos humanos, políticas públicas, participação democrática, terceiro
setor e movimentos sociais. É Secretária
de Estado Adjunta da Mulher e dos Direitos Humanos. É membro da Comissão dos Direitos da Pessoa
com Deficiência da OAB Nacional e Diretora Jurídica e de Diversidade da
Associação Brasileira de Recursos Humanos – Seccional Alagoas (ABRH/AL) - ritarita2000@gmail.com.
[2]
O que acabamos de fazer, embora de maneira bem simplificada, foi a
áudio-descrição da figura, para que as pessoas com deficiência visual não
percam a oportunidade de apreciar a imagem que integra este texto.